O Filho de Mil Homens



Embora os últimos posts possam parecer que servem de publicidade para autores portugueses, a verdade é que não têm qualquer objectivo publicitário, mas sim de partilha. Para além disso o facto de os deixar aqui é porque a sua leitura o justifica [no meu entender obviamente]. 
Este (post), como o título indica, é dedicado ao livro "O Filho de Mil Homens" de Valter Hugo Mãe. Li-o na sequência da leitura do livro "A Desumanização" e quando digo na sequência não me refiro ao facto de as histórias estarem interligadas, pois não estão, digo-o simplesmente porque foi o prazer de ler um que me levou a querer ler o outro e foi uma escolha acertada.


Este livro fala sobre a vida, sobretudo na perspectiva de uma vida solitária que é o caso de algumas personagens que sentem na pele a solidão e como se isso ainda não bastasse, têm também de sentir a injustiça do olhar, da cobiça e do mau agouro das outras pessoas sobre as suas vidas. De uma forma muito peculiar e inesperada as vidas das personagens deste livro vão-se compondo aos poucos como, se no final de contas, tudo não passasse de uma mensagem de esperança para aqueles que pensam que o tempo que resta está perdido por natureza. A título de exemplo e não querendo deixar spoilers, temos o Crisóstomo que aos 40 anos ainda não encontrou a mulher para a sua vida e que também gostava de ter um filho para assim poder dar algum sentido à sua existência, para se poder sentir completo ... A Isaura que parece não conseguir ultrapassar a infelicidade de estar só e de se sentir feia aos olhos dos outros, outros esses que na sua maioria só sabem dizer que de bonito ela tem o nome, mas certamente que não será assim e quando ela menos espera pode ser que a vida lhe reserve alguma surpresa... O Camilo que é filho da anã, mulher pequena cuja vida é passada a pente fino pelas vizinhas devido a essa sua condição física e cujo facto de ter uma cama de tamanho de gente grande acaba por ser um grande mistério...até que vem o Camilo, o seu filho, outra razão para haver um alvoroço na aldeia. 
O Antonino, filho de Matilde, sofre na pele a crítica à sua condição de homossexual, ou de maricas, condição essa que por vezes é exprimida neste livro de forma cruel (mas que não foge ao que muita gente enfrenta na vida real), embora o autor consiga também abordar este assunto de forma bastante interessante e até engraçada devido à sua escrita muitas vezes poética... A Matilde que teve na vida um só filho e que mesmo assim se sente derrotada por pensar que deu um mau fruto ao mundo e vive na constante dualidade de querer aceitar e rejeitar aquilo que é seu, o seu filho! Existem mais umas quantas personagens interessantes que se vêem envolvidas em situações que chegam a ser cómicas sem serem absurdas e que fazem deste livro uma óptima leitura. 
Se por ventura alguém aqui passar e conhecer outros livros de Valter Hugo Mãe que sejam tão bons quanto esse ou Desumanização, faça o favor de sugerir que eu agradeço :-).

"O Crisóstomo começou a pensar que os filhos se perdiam, por vezes, na confusão do caminho. Imaginava crianças sozinhas como filhos à espera.
Crianças que viviam como a demorarem-se na volta para casa por terem sido enganadas pela vida. Acreditou que o afecto verdadeiro era o único desengano, a grande forma de encontro e de pertença. A grande forma de família.
Sentia uma urgência grave sem saber ainda o que fazer."

"Quem tem menos medo de sofrer, tem maiores possibilidades de ser feliz."

"A anã fazia um arroz de brincar e juntava-lhe um pedaço pequeno de bife e comia como a brincar, tão pouquinho quanto engraçada, num banco de bonecas à sua mesa especial, com tamanho para ser só um banco maior do que o banco de sentar. Comia pouquinho porque não lhe dava a natureza uma grande fome.
Muitas vezes, levavam-lhe meio coelho e meio frango e até das couves lhe levavam as pequenas, escolhiam cenourinhas e se vissem alguma batatinha mais mirrada sorriam, como se por natureza fosse comida para a anã. Achavam, por isso, que era barata a vida dela, como se pudesse ser feita com as sobras do que escapava às bocas grandes."

"A Isaura sabia que amava alguém por vir, amava uma abstracção de alguém no futuro. Ela esperava o futuro, e esperar era já um modo de amar. Esperar era amar. Certamente, amava de um modo impossível o futuro...
E chorou sem qualquer convulsão porque aceitou chorar. Aceitou chorar. Havia muito que não o fazia. Talvez tivesse percebido que a natureza era, toda ela, uma expressão exuberante e que manifestar os seus sentimentos seria uma participação ínfima nessa honestidade do mundo. Talvez tivesse percebido que usava de honestidade consigo mesma pela primeira vez em muitos anos.
Disse: estou sozinha. E repetiu: estou sozinha. Desatou a falar como se não suportasse mais a boca fechada. Era uma mulher carregada de ausências e silêncios."

"O toque de alguém, dizia ele, é o verdadeiro lado de cá da pele. Quem não é tocado não se cobre nunca, anda como nu. De ossos à mostra."

"Quando se conhece alguém, pensou o Crisóstomo, procuram-se as exuberâncias dos gestos, como para fazer exuberar o amor, mas o amor é uma pacificação com as nossas naturezas e deve conduzir ao sossego. O gesto exuberante é um gesto desesperado de quem não está em equilíbrio."

"Talvez os homens maricas o fossem por sofrerem demasiado com coisas nenhumas. A Isaura surpreendia-se com esse pensamento. O Antonino por casa a contar-lhe como estavam as peripécias da sua vida e aquela emoção constante, e ela a achar que ele era delicado, a escolher sofrer meticulosamente por cada assunto, como se em cada assunto da sua mãe estivesse em causa o seu lugar de filho. Como se fosse filho da Matilde ainda antes de pensar em si como um homem adulto, despegado de cordões umbilicais, saias e saiotes. Era delicado. A Isaura chegou-se perto dele e investigou a expressão honesta do seu rosto. O modo como se expunha diante dela e a tratava como uma amiga. Ela nunca fora amiga de ninguém."

"Não adianta sonhar com o que é feito apenas de fantasia e querer aspirar ao impossível. A felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser."


"Ficaram os três alinhados e com expressões de um encantamento tão terno quanto ridículo. Ela perguntou: o boneco tem nome. Ele respondeu: não. Ela disse: que sorte, assim não precisa de ser ninguém. Quem não é ninguém não lhe falta nada. Nem lhe falta o amor, nem espera por nada."

Comentários

  1. Se comprar o livro, venho cá dar-te um SHAME ON YOU!!! Gostei mesmo muito dos excertos, e apesar da minha "fobia literária" por obras de escritores portugueses, neste caso há um conjunto de personagens que parecem ser muito interessantes, e como sabes quanto mais estranhas elas são, mais eu gosto.

    :-) E são esse tipo de excertos que tornam um livro ainda mais especial. Eu ando em modo offfffffff não consigo ler :-(

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    1. Penso que deverás experimentar ler alguns livros de autores portugueses para testares essa tua "fobia". Também não sou grande entendido no que toca aos nossos autores, mas os poucos [ou muito poucos] que leio no meu entender valem a pena. Mas lá está, é tudo uma questão de gostos e isso como se sabe, não se discute.

      Tens de esperar um bocado para regressar a concentração mínima necessária para a leitura. Há alturas assim...em que a mente foge sempre para outros assuntos [geralmente situações consideradas problemas] durante a leitura e não é fácil evitar isso quando se quer tirar partido do livro.

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  2. É sempre bom saber a opinião de quem já leu... e obrigado pelas citações e pela sinopse que fazes do livro, de resto muito boa... :)

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  3. eu também já o li e gostei muito. de VHM, é o livro de que mais gostei e já li outros dois.

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    1. Olá Margarida! Quais foram os outros que leste de VHM?
      Para além desse, até agora só li o Desumanização (http://fragmentosrepartidos.blogspot.pt/2015/01/a-desumanizacao-valter-hugo-mae.html) que achei também mesmo muito bom.

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    2. 'O remorso de Baltazar serapião' e 'O apocalipse dos trabalhadores'. não sou leitora fiel deste autor.

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    3. Afinal foram 3: adorei 'o nosso reino'. dos outros mais ou menos.

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  4. Entao tenho de espreitar esse "O nosso reino" :). Só recentemente li algo de Valter Hugo Mae. Não gosto muito de seguir modas.

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