2025.2 - A Escrava Açoriana - Pedro Almeida Maia

 A Escrava Açoriana - de Pedro Almeida Maia

a sinopse do livro é a seguinte:

No ano da Graça de 1873, o mundo pertence aos homens que cospem para o chão. Açorada por partir, Rosário oculta-se num enorme capote e capucho negro, tal como a maioria das mulheres. É uma adolescente irreverente, do contra, e desafia todas as convenções masculinas: rouba, corre descalça, luta com os punhos e até beija em público. No final do dia, lê Camilo e reza o terço com a mãe.


As Ilhas Adjacentes são um misto de encanto e de escassez, afastadas do Reino e das promessas da Coroa. Os engajadores brasileiros aliciam os açorianos a viajar para o Império, com promessas de riqueza. A família de Rosário entrega tudo o que possui e embarca na escuridão.


Mas a viagem no navio é calamitosa, uma nuvem de pessoas atoladas na própria imundície, e a chegada ao Rio de Janeiro oferece desafios inesperados. Rosário vive como uma escrava e vê o futuro esfumar-se. Perde o rumo, a virgindade e a esperança. Precisa de reagir, mas isso implica tornar-se uma pessoa totalmente diferente.


Sendo um livro que tinha alguma curiosidade em ler, devido ao facto de me ter cruzado com algumas publicações que faziam referência ao mesmo, e também por se tratar de algo escrito por um autor Açoriano, decidi avançar com a sua leitura. À semelhança de muitos conterrâneos, a tendência é ler obras de outros autores, quer sejam portugueses ou não, em detrimento da leitura daquilo que se escreve nestas ilhas vulcânicas. Talvez por serem autores mais conhecidos por serem mais publicitados/divulgados em diversas plataformas. A leitura deste livro surpreendeu pela positiva. Acredito que seja um bom incentivo, ou ponto de partida, para quem pretenda prestar mais atenção ao que se escreve nos Açores, quer seja sobre os Açores, quer seja acerca de outros temas. No caso deste livro, a "açorianidade" está muito presente, aliada a outros ingredientes que fazem deste livro uma boa refeição de palavras. 


Pode parecer um pouco estranho, mas ao mesmo tempo prazeroso, o exercício de tentar reimaginar os locais mencionados no livro, locais esses conhecidos por nós na sua versão mais recente, ou pelo menos com menos idade do que aquela aquando da ação inicial deste livro. Mas não deixa de ser engraçado conseguirmos identificar-nos com algumas coisas que são mencionadas no livro, quer estejam relacionadas com os locais, quer estejam relacionadas com os costumes do nosso povo. Características ou atitudes que, em alguns casos, ainda perduram. No entanto, há que referir que felizmente algumas dessas características e costumes também ficaram pelo caminho ao longo do tempo porque não tinham motivo para se prolongarem no tempo. 


Este livro, para além de nos “entreter” ajuda-nos também a reviver, ou a saber como é que foram vividos alguns momentos históricos, dos finais do Século XIX e primeiro quarto do Século XX, sob a perspectiva do povo Açoriano.


Tendo em conta a ideia ou pretensão do livro, que no meu entender pretende dar a conhecer algo que fez parte da identidade e realidade do povo açoriano, nomeadamente o fenómeno da “escravatura branca”, penso que o autor conseguiu cumprir esse objecto. Quando se fala em emigração, por parte do povo Açoriano, nomeadamente com o intuito de procurar melhor condições de vida, pensamos quase sempre na ida dos nossos antepassados para países como Estados Unidos da América e Canadá, não esquecendo alguns países da Europa, certamente, esquecendo assim outros destinos que fizeram parte dos planos das gerações passadas.

A exploração de açorianos no Brasil, a chamada "escravatura branca", perdurou ao longo de grande parte do século XIX, intensificando-se em certos períodos devido a fatores como o declínio do tráfico de escravos africanos e as dificuldades económicas nos Açores, onde a pobreza era significativa. Os fazendeiros brasileiros ainda necessitavam de mão de obra para as suas plantações, especialmente as de café, e viam nos imigrantes europeus, incluindo os portugueses, uma alternativa à mão de obra escrava, que estava sob crescente pressão abolicionista.

Muitos açorianos eram aliciados com falsas promessas e chegavam ao Brasil endividados com os custos da viagem. Eram então submetidos a contratos de trabalho que os prendiam às fazendas, com dívidas que se tornavam impossíveis de pagar devido aos juros elevados e às más condições salariais.

As condições de trabalho nas fazendas eram frequentemente exaustivas e insalubres, com longas jornadas e pouca ou nenhuma remuneração até que as dívidas fossem "saldadas". Isto criava um ciclo de dependência que impedia os imigrantes de sair e procurar melhores oportunidades.

É neste imbróglio que a personagem Rosário, e seus familiares, se vê metida. Como é fácil imaginar, depois de estar envolvida numa situação deste género, o futuro não se torna muito promissor!

Voltando ao que eu referi anteriormente, penso que o autor consegue manter, ao longo do livro, um bom equilíbrio entre a vertente histórica, e a vertente que se pode considerar mais ficcional, conseguindo uma boa intrusão entre a vida das personagens e os diversos acontecimentos, quer estes sejam históricos, quer estejam relacionados com os temas abordados (escravatura, prostituição, roubo, etc) no livro, sendo que neste livro acompanhamos a vida de algumas personagens ao longo de algumas décadas, acompanhando várias gerações.



No geral podemos ficar com a sensação de que algumas coisas podiam ser ainda mais desenvolvidas, ou exploradas, como é o caso das peripécias relacionadas com a vida da personagem Rosário no Brasil, e as diferentes “fases” que compõem o seu percurso naquelas terras longínquas. Entretanto, não quero com isto dizer que o que é relatado não seja mais que suficiente para ficarmos a par daquela triste e penosa realidade.

 

Mais tarde, numa outra fase em que o livro relata novamente acontecimentos, passados ou vividos nos Açores, sobretudo na Ilha de São Miguel, e durante um período temporal que compreende vários anos, ou até décadas, ficamos novamente com a sensação de que as coisas avançam muito depressa, sem grandes detalhes. No fim de contas, talvez tenha sido a forma que o autor encontrou de conseguir fazer com que o livro não se tornasse demasiado “pesado”, ou até repetitivo, garantindo algum ritmo e mantendo assim o leitor empolgado com a leitura.


Sem querer dar informações sobre o que pode acontecer no livro, para não estragar a leitura a quem pretenda dar uma oportunidade a esta aventura, o que posso dizer é que este livro também nos transmite a mensagem de que, por vezes, não valorizamos aquilo que temos, e, na ilusão de ir em busca de algo melhor, mas incerto, podemos acabar por ter que voltar ao ponto de partida em piores condições de que aquelas que existiam inicialmente. Não esquecendo que pode também não haver regresso e ser uma viagem só de ida. Quem sabe se foi esse o destino de Rosário…


Uma das coisas que mais me cativou neste livro foi a utilização de uma linguagem rica, emocional e descritiva, com forte carga visual e simbólica, mas sem abandonar o fio narrativo nem assumir inteiramente os traços formais da poesia. Alguns desses momentos estão fortemente ligados à génese do povo Açoriano, sobretudo no que se refere às personagens, mas ocasionalmente também quando são feitas referências a alguns lugares onde as coisas acontecem, nos Açores.



Desejei que nos voltássemos a ver e que Deus nos acompanhasse rumo a um amanhã flutuante, mas só ouvi o pio do milhafre. Sempre o pio do milhafre.


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