Por a casa em ordem - um romance sobre almas

Pergunto-me quantos de nós, diante de um espelho (ou não necessariamente nessa ocasião), nunca experimentou o pensamento de podermos observar-nos a nós próprios como se estivessemos fora do nosso corpo, uma experiência extra-corporal. Imaginar que nos observamos e nos avaliamos como se fossemos outra pessoa que não nós próprios. Talvez a imagem do santinho e do diabinho ao topo da nossa cabeça, uma imagem muito recorrente quando se deseja expressar a dualidade do "bom vs mau" ou "bem vs mal", possa ser adicionada a esta linha de pensamento. E se elevarmos o nível de complexidade que uma experiência intra-pessoal e/ou extra-pessoal pode ter sobre nós, poderemos facilmente chegar a um cenário de personalidade múltipla! Apesar de não ser algo que me seja totalmente desconhecido enquanto conceito, devo dizer que ler o livro "Por a casa em ordem" de Matt Ruff, resumidamente descrito como "um romance sobre almas", foi uma forma muito interessante e divertida de explorar aquilo que pode ser a personalidade múltipla, aguçando a nossa curiosidade em relação a esse assunto enquanto vamos lidando com as personlidades (no livro denominadas, e com razão, de "almas") das personagens.
Um livro que nos seus primeiros passos parecia encaminhar-me erradamente para algo abstracto e que iria requerer doses elevadas de concentração para não perder o fio à meada. Digo erradamente porque depois de entender pequenos pormenores que não podem escapar porque fazem toda a diferença, tudo começa a fazer sentido no que diz respeito à mecânica do livro e à forma genial como o autor do livro consegue criar esses mundos interiores onde vivem as almas, e que, como temos oportunidade de ir descobrindo ao longo do livro, estão de alguma forma espelhados ou relacionados com o mundo exterior e com a vida/história das personagens. Como se isso não fosse suficiente, o livro ainda nos oferece reflexões que podem estar relacionadas com qualquer um de nós enquanto pessoas uniformes ou multiplas, histórias muito bem contadas e que fazem todo o sentido, levando-nos para a resolução de uma espécie de puzzle, mais complexo do que aquele que vemos na capa do livro, fornecendo-nos aquela satisfação que procuramos quando lemos um livro, um bom livro!

“Alguém tem de gerir o corpo; isto é, sob muitos aspetos, um truísmo, mas não é literalmente verdade; é possível, embora geralmente não seja boa ideia, deixá-lo sem atenção. O truque é assegurar-se que o corpo está num lugar seguro, onde, se começarem a acontecer coisas más, isso aconteça lentamente e com muitos avisos. …
Embora eu troce disto, é um assunto sério…
…qual era a sensação de abandonar o corpo. «Contrais-te para dentro de ti próprio, flutuas para fora de ti, ou como é?» Depois de várias tentativas ineptas de lhe fornecer uma descrição, descobri este exercício que, embora não seja perfeito, pelo menos transmite a ideia geral: inclinas a cabeça para trás o mais que puderes. Sentirás uma tensão nos músculos da parte detrás do pescoço que se torna rapidamente dolorosa. Imagina essa tensão a espalhar-se para fora, embrulhando-se em torno da tua cara e descendo para o tronco, braços e pernas, tornando toda a tua pele numa casca rija como uma armadura. Agora, imagina-te a recuar para fora dessa armadura e a encontrares-te a ti próprio, não atrás do teu corpo, mas num sítio completamente diferente. Imagina tudo isso a acontecer entre dois batimentos cardíacos.”


“Para ela, o pai era uma série de histórias, algumas contadas pela mãe, outras pela avó, e mais algumas histórias ficcionais fornecidas por memorando. As histórias de que Mouse gostava mais eram as da avó, mas eram as da mãe as mais imponentes – histórias de Morgan Driver, o valoroso cavaleiro, o cavalheiro que morrera tragicamente, mas não sem ter primeiro assegurado que a sua família tivesse coisas boas para sempre.”


“Eu estava morto.
Isso, por si só, não me preocupava muito. Nunca tive medo da morte. De morrer, sim-, de um fim doloroso, ou prematuro – coisas importantes que ficam por fazer - , sem duvida. Mas a ideia de estar morto não me causava qualquer terror particular. Lembrava-me do momento do meu nascimento e, tendo vindo da escuridão, parecia-me perfeitamente adequado que lá voltasse. As partes assustadoras ficavam todas no meio. Então estar morto não me incomodava. O que me incomodava era a forma como não me incomodava.
No lugar nenhum do esquecimento não devem existir emoções; o tempo para nos sentirmos confortáveis com a morte deve ocorrer antes desta, não depois.”


“Pois a minha alma não se dissolveu uniformemente em nada: desintegrou-se em estágios, camadas de identidade a descascar como uma cebola, reduzindo-me à não-existência.”

Já que o assunto deste post está relacionado com a personalidade múltipla, deixo aqui o trailer de um filme que aborda este tema e que parace valer a pena ser visto.


Comentários

  1. O livro poderia ser um quebra-cabeças mas quando se entra no ritmo de uma história diferente o resultado final é lermos sobre histórias de pessoas que têm um problema em comum.

    :-) Um dos livros que mais gostei de ler!

    Abraço,
    Carlos

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  2. fiquei curiosa...

    adorei a frase:
    "Eu estava morto.
    Isso, por si só, não me preocupava muito. Nunca tive medo da morte. De morrer, sim-, de um fim doloroso, ou prematuro – coisas importantes que ficam por fazer - , sem duvida."

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