Tu, que eras tu sem que fosses tu


Por vezes vem-me à memória os tempos em que tu eras tu sem que o fosses, e eu era eu, mas mais novo, mais inocente, igual a quem sou hoje, mas com menos uns quilos de anos a pesar no agir, no pensar e no sentir. Havia coisas que eu percebia porque naquele tempo já tinha idade de as perceber, mas tu, que não eras tu, tornavas os dias difíceis e mesmo percebendo, eu não percebia. Eu não percebia tudo, e não percebia tudo porque parte de mim ainda era uma criança que queria estar a ser criança.
O tempo era formado por grupos de horas lentas que caminhavam entre o dia e a noite, e eu, pouco mais podia fazer no vagar do tempo, sem ser estar em estado de alerta, a observar os teus movimentos e a decifrar os teus passos, embalado na melancolia daquelas correntes invisíveis que nos amarravam a ti como se fosse uma obrigação nossa. É verdade que queriamos estar presos a ti, mas de outra forma, e que essa fosse o teu abraço em sinal de afectos, como era natural que assim fosse. Eu sei que por vezes a vida distrai-nos e leva-nos a enveredar por caminhos menos correctos e mais prejudiciais para nós e para quem nos rodeia, de maneira que, em resposta a essas memórias, percebo, ou suponho, que apenas querias estar no teu "mundo", estar um pouco à parte da dimensão real de tudo e de todos, viver à parte qualquer que fosse o teu sofrimento, um algum arrependimento talvez, alguma falta de sentido para com a vida... talvez. No entanto a nossa função era não deixar que te afastasses ainda mais e era aí que residia a dificuldade, era difícil não te deixar escapar, juntavamo-nos para te fazer ficar perto de nós, mas nem sempre tínhamos sucesso. Mas hoje estás connosco. Há muito tempo que estás connosco sem te tentares afastar, e eu, que sou quem eu era, mas mais velho, com mais milhares de horas de vida na mochila, sei que enfrentas outros desafios e que escalas montanhas de desilusões e tens poucas esperanças de um futuro risonho, mas mantens-te perto do nós, ou dos que restam, ou do que resta dos que restam.

Comentários

  1. Já li "O Jogo do Anjo"...
    Não o achei menos bom, mas na minha opinião o escritor usou as mesmas técnicas para surpreender o leitor.
    Se continuar a fazê-lo em livros futuros vai perder metade da graça.
    Obrigada...

    Já agora... gostei do blog...

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