José Luis Peixoto - Cal
A idade das mãos
Contemplamos alguns momentos da vida de Ana...uma mulher com mais de oitenta anos, mas que nos é apresentada sem idade porque não nos lembramos da verdadeira idade dela e isso porque estamos com ela e estamos com o anjo que a acompanha, com a sua cadela de estimação, a sua burra e o prisioneiro que a surpreende e permanece ao seu lado. Em breves momentos acontece tanta coisa e ao mesmo tempo não acontece quase nada, mas as palavras que são tão simples tornam-se grande e o quase nada transforma-se em muito, transforma-se no suficiente para nos encher os olhos, a imaginação e o coração.
"Havia momentos em que achava que não havia momento nenhum da sua vida fora da prisão em que não tivesse pensado duas vezes desde que entrara na prisão. Passava as noites deitado, a ver um quadrado negro na janela e a esperar. Às vezes, havia uma estrela que brilhava dentro daquele quadrado. Ele acreditava que, se pudesse ver o céu inteiro, conseguiria sempre distinguir aquela estrela. Nascia o dia e depois voltava a noite."
O sorriso dos afogados
Uma pequena viagem entre o agora e o depois, entre o cá e o lá...onde podemos encontrar quem menos esperamos, quem nos sorri e num momento de cumplicidade damo-nos conta da nossa existência e da existência daqueles que existem de uma maneira diferente, daqueles que existem mas não estão presentes porque estão algures num mundo de sossego, de silêncio e tranquilidade...como o fundo do mar ou no fundo de uma barragem.
"Havia apenas mais uma hora de luz naquele dia. Entrei na água. Entrei num novo mundo, diferente da terra das pessoas, diferente do céu dos pássaros. Uma hora seria suficiente. Conheço todos os cantos da barragem. ... O céu da barragem não e infinito. Acaba numa superfície de vidro que não se consegue tocar."
Os velhos
Laços familiares que se prolongam ao longo de gerações. A proximidade, a lonjura, a convivência dos momentos simples, dos momentos em famílias e os defeitos dos membros da família. Longas vidas que caminham por rumos diferentes mas todas com um mesmo destino, a mesma meta em tempos diferentes, mas o sentimento final é o mesmo, é o sentimento de tristeza pela perda de alguém. A perda de alguém que, mesmo com defeitos, era alguém especial...mesmo sendo um velho.
"O meu padrinho novo tinha setenta e tal anos. A minha madrinha também. Não me lembro de o meu padrinho velho ter menos de noventa e tal anos. Eram os velhos. Às vezes, à hora de jantar, o meu pai virava-se para a minha mãe e perguntava: foste ver os velhos? Não era por maldade. Eles eram velhos. A minha madrinha tivera uma filha havia mais de quarenta anos, mas morreu ainda criança. A minha madrinha, ao lume, sentia pena da sua menina morta. Mexia as brasas com a tenaz e falava disso como se chorasse."
A mulher que sonhava
Este texto leva-nos numa pequena viagem entre o mundo real e o mundo sonhado em que os dois mundos se misturam e é como se estivéssemos dentro de um túnel de água com inúmeras curvas em que, ora estamos a falar do real, ora estamos a falar dos sonhos. Sonhos que podem ser bons ou podem ser maus, tudo depende da idade e das circunstâncias da realidade vivida num sonho ou da realidade real que parece ser suavizada apenas pela recordação dos sonhos sonhados.
"Acordou tão feliz. A freira abriu a porta do quarto e atravessou o pequeno corredor entre as camas. Algumas mulheres acordaram logo que esses pequenos ruídos tocaram o silêncio:...Já fora da cama, enquanto vestia o roupão e calçava os chinelos, lembrava-se ainda do sonho que tivera. Lembrava-se do sonho como se sonhasse ainda. Sorria. Tinha sonhado que era nova e que não estava no asilo. Era nova e estava em casa. A mãe chamava-a da cozinha, tinha sonhado. ...O incómodo de ter acordado permanecia. O incómodo de ter sonhado. Num sonho que continuava depois do momento em que acordou, tinha-se visto velha."
O homem que está sentado à porta
Em apenas alguns minutos, muito poucos por acaso, talvez menos que o número de dedos numa mão, parece que somos postos à conversa com um senhor que está sentado na soleira de uma porta. Um senhor que conhecia o pai do Peixoto e que acaba nas páginas do livro escrito pelo filho do Peixoto. No final do texto somos convidados a entrar na casa deste senhor e procurar esse livro que fala dele porque quem lhe diz que ele está num livro, por mais conhecimentos que tenha, não lhe sabe dizer de que se trata esse livro...será que o conseguiremos ajudar? Talvez sim....depende se conseguimos ou não encontrar o tal livro.
"Quem visse o filho do Peixoto aí a correr pelas ruas com os outros cachopos nunca poderia imaginar que, um dia, ele ainda havia de se lembrar de escrever sobre mim num livro. Nunca ninguém consegue compreender as voltas todas do mundo. Mas, mesmo assim gostava de saber melhor porque é que ele escreveu sobre mim....Mas já que aqui estás, será que podias ler-me um bocado do livro e explicar-me o que está lá escrito?"
O grande amor do mudo
Este texto levou-me por momentos ao mundo que José Luís Peixoto nos deu a conhecer em Nenhum Olhar, aliás, até agora, em Cal, quase que se pode dizer que as personagens destas estórias vivem muitos próximas das que vimos em Nenhum Olhar, é um ambiente que já conhecemos. Quase no final deste texto pensava que íamos conhecer um pouco melhor a Ana que tinha uma cadela, uma burra e um anjo que a acompanhava, mas afinal conhecemos uma outra pessoa, que também tem um passado peculiar...uma vida que se perdeu na esperança de reencontrar alguém que desapareceu "misteriosamente"e que se transformou numa flor debaixo de uma azinheira.
"Eu cheguei a conhecer o mudo. Ainda não andava na escola. Não sei se já tinha cinco anos. Subia e descia o muro do quintal. As minhas mãos cabiam nos buracos pequenos do muro. Os meus pés cabiam nas curvas ténues da cal. ... Quando chegou Março nasceram flores nos campos. Debaixo da azinheira nasceu uma única flor. Era uma flor bravia. As raízes dessa flor atravessavam a terra, eram longas, e entravam dentro do corpo do mudo. Aquilo que tinha sido a vida do mudo entrava por essas raízes e corria dentro dessa flor. Ninguém sabia, mas o mudo era essa flor."
Febre
Este foi um texto que depois de ler me deixou a pensar que há alturas na nossa vida em que nada faz sentido, em que tudo perde a cor, em que tudo perde a sua razão e é aí que surge a febre, é aí que tudo fica amarelo, doentio, monótono e desprovido de sentido. É nessa febre que se espera que alguém nos bata à porta para nos levar a algum lado...será essa viagem a salvação ou será essa a viagem final?!
"Sentava-se no sofá, pousava as mãos nas pernas e olhava a escuridão. E até a escuridão era amarela. Mais asfixiante ainda do que a casa, porque a escuridão era infinita e de um amarelo sem formas. No início, instintivamente, fechava os olhos, e dentro do seu olhar fechado, mesmo o que nada via era amarelo. ... Antes de dormir, tomava sempre um chá de casca de limão e, chegou mesmo a pensar que pudesse ser esse hábito aparentemente inocente que lhe turvasse a vista de amarelo."
O dia de anos
Novamente moldado à vida da senhora de setenta e dois anos que aparece várias vezes neste livro, surgem os planos para um dia de aniversário. Aquele dia que alguns esperam com grande ansiedade, quer pela vontade de festejar, quer pela vontade de simplesmente ver esse dia passar depressa para não pensar mais nisso por mais 11 meses e alguns dias. E como do inesperado surge grandes momentos, grandes memórias, surgem também desilusões e momentos de transtorno emocional em que um dia especial se torna num dia triste e sem sentido, um dia de solidão.
"Estava a olhar para os cachopos do carrocel e a comer a fartura aos poucos para durar muito, quando apareceram dois homens a cumprimentarem o meu marido. Abalaram os três. ... Às vezes, assomava-me à porta da venda e o meu marido estava sempre encostado ao balcão a beber um copo meio de vinho tinto. ... No chão, ficaram só as caixas de sapatos vazias e os papéis arrastados por uma aragem miúda. Ficou só a noite. ... Olhei a noite. ... Tinha feito setenta e dois anos."
O último dia de todos os Verões
Este texto narra uma história triste, o relato de um simples dia de trabalho, no campo, onde estão presentes o pai e os seus dois filhos. Aquilo que parecia ser uma rotina, como aquela que enfrentamos todos os dias e da qual muitas vezes reclamamos por estarmos fartos, aborrecidos, naquele dia ganhou outros contornos e é quanto menos se espera que as coisas podem acontecer. Após determinados acontecimentos, não temos outra solução senão adaptar a nossa vida, os nossos dias, as nossas memórias, à nova realidade, à nova rotina, que pode até ser a mesma, mas devido a um pequeno pormenor, pode ser totalmente diferente!"Os homens acertavam com os machados nos sobreiros e arrancávam-lhes pranchas de cortiça como se lhes arrancassem a pele. O tronco das árvores ficava mais claro, ficava liso e tinha pequenas gotas de água. Quando o pai passava a palma da mão por esses troncos, fechava os olhos, recolhia algumas gostas de água e passava-as pelo rosto. Nessa tarde, de repente, como um lençol, uma camada fina de céu pousou sobre os campos. Ninguém conseguiu distinguir esse momento exacto; no entanto toda a gente soube ver que a terra ficou mais fresca, os pássaros apareceram, o vulto luminoso da lua tornou-se nítido no céu.Foi depois desse momento invisível que ..."
Peça de Teatro: "À Manhã"
Uma breve peça de teatro onde encontramos uma mão cheia de personagens, umas mais presentes que outras, mas todas elas relacionadas. Relacionadas entre si através da amizade, através de laços familiares ou relações amorosas. Uma escrita simples com alguns termos do quotidiano pelo meio, provavelmente típicos da terra natural do autor do texto, mas no geral é uma linguagem muito própria. As personagens não diferem muito das que encontramos ao longo de todo o livro, não esquecendo Olga, que tem Alzheimer ou algo do género...e por isso ela vai viajando entre o real e o imaginário. Um imaginário que de certa forma é mais real do que a realidade que devia ser o mundo real dela. Infelizmente o cinismo, forçado ou intencional, é uma das características que fazem parte do ser humano, daquelas que ninguém se deve gabar.
"Macha: Então pois. Mas os cachopos estão muito finos. Um dia estava lá a entreter-me com uma malha, até estava a fazer um cachecol para o Kevém, o marido da minha Lucréria chama-se Kévem...
Ti Irininha: Kévem?
Macha: É. Kévem. É os nomes ingleses que eles para lá têm. Mas estava entretida com a malha e entrou o mais pequeno, que está agora como nove anos, e andava só de roda de mim. Ora, a irmã estava na sala com o namorado e eu mandei-o para lá. Nem um minuto lá ficou. Perguntei-lhe porque é que voltou tão depressa e disse-me: ah, avó então não vê que eles estão no sexy.Ti Irininha: No sexy? Já a formiga tem catarro."
Ver a minha avó
Como o próprio título do texto indica, encontramos neste texto uma visita a uma avó, um olhar sobre vários aspectos da vida da avó do autor do texto. Quem era ela? O seu modo de vida simples, os gestos que já deixaram de ter importância, e, no entanto, são um conjunto de pequenas acções que marcam e enchem a memória. Que guardam os traços de uma avó, pequenos detalhes que podem ser comuns a muitos de nós. Um texto que deixa um sentimento de nostalgia a vaguear sobre nós.
"À noite, ela liga a televisão a preto e branco. Aborrece-se com filmes porque não é capaz de ler as legendas. Pode ver a telenovela, mas a não lhe dar suficiente atenção, a esquecer os nomes e a suspeitar da história. Ela sabe que não é real. As lágrimas da rapariga triste são feitas de cera, ou são fingidas, o que é a mesma coisa. A rapariga triste da televisão não mora em nenhuma rua da nossa vila."A mulher de negro
Muitas vezes sentimos uma angústia que cresce em nós, e é como alguém que encontrássemos dentro de nós quando iniciamos a procura de uma solução, de uma voz que nos diga o que fazer e é como se fosse essa, a pessoa a quem éramos capazes de contar tudo, fossemos capazes de dizer tudo o que queríamos dizer, sem medos, sem precauções, simplesmente dizer tudo. É essa a mulher de negro que talvez possamos encontrar nesse texto, uma pessoa frágil, que habita no interior de uma floresta, da nossa floresta, e que se apresenta como uma confidente, como uma fuga à luz do dia, uma fuga ao ruído de um mundo aberto e exposto e por vezes inseguro e perigoso.
"Ao entrar na floresta, o guiador a balançar nas minhas mãos, afastava-me de tudo o que era a minha casa, os meus amigos, os lugares onde pensava que me podia sentir seguro. A tarde tornara-se fresca no meu corpo sob as roupas: a camisola branca, as calças. Conhecia menos o meu corpo sob as roupas do que conhecia as roupas. Conhecia as roupas do tempo que passaram guardadas em gavetas, conhecia-as de quando as dobrei e guardei em gavetas, quando as escolhi e comprei, e , nesse dia, quando as escolhi por querer vesti-las.
...
A palma da sua mão tinha linhas que eram o mapa de uma vida inteira, uma vida com todos os seus enganos, com todos os seus erros, cm todas as suas tentativas. Os seus olhos de pedra. Senti os ossos da sua mão a envolverem os meus dedos. Não me puxou, mas eu aproximei o meu corpo do seu."
A viúva junto ao rio
Um texto bonito, no entanto, é um dos mais tristes que encontramos em todo o livro. É como o passar de uma vida à frente dos olhos e a impossibilidade de fazer o que quer que seja para a agarrar. Estar tão perto de algo, prestes a consegui-lo e há algo que o impede. É a sensação que temos por vezes em diversas etapas da nossa vida, independentemente do contexto em que se possa inserir. Teremos forças para acreditar que nunca é tarde demais?! E que mesmo parecendo tarde ainda dá tempo de lutar e perseguir os sonhos e objectivos?! Talvez seja bom acreditar que sim.
"Hoje, estou sentada na margem do rio e Deus está snetado ao meu lado. Há quarenta anos, era de manhã. Há quarenta anos, o rio era exactamente igual. Estou velha. Também Deus está velho. Sentamo-nos juntos e pensamos. O tempo é mais leve. Nem eu, nem Deus esperamos nada. Mergulho os dedos e a água é fresca. Ouço as palavras serenas que a água me diz. Os meus cabelos já não são longos e negros."
Gosto imenso da escrita de José Luís Peixoto, especialmente do livro "Cal", em particular da descrição das mãos de Ana...
ResponderEliminarAbraço
Espero que conheças o seu primeiro livro, ediçao de autor, "Morreste-me". Foi aí que o conheci...
ResponderEliminarUm dos livros impressionantes em cujas páginas minhas já fatigadas retinas pousaram. Li-o agora, nesse intermitente inverno croata, com prazer inusitado. O livro encheu-me de associações. O lirismo e a transparência da ficção de José Luiz, o autor, são mais que tocantes. Conheci-o pessoalmente e adoraria ler toda a sua obra, pois só li três de seus livros. Uma experiência inolvidável, a da "cal"!
ResponderEliminarSou do Brasil e adoraria poder me corresponder com José Luis Peixoto, através de mensagens.
ResponderEliminarTenho imensa vontade de conhecer toda a sua obra e divulgá-la no Brasil.
Gostaria muito de trocar impressões com algué que sinto, tão íntimo de mim, pelo pensamento.
Espero resposta.
grata...Alice
Cara Alice Almeida. Obrigado pelo teu comentário aqui no meu blog. Devo dizer que o meu blog não tem nada a ver com José Luís Peixoto, embora, tal como tu, gosto dos livros desse autor português e tenho alguns textos publicados relacionado com o tema aqui no blog, mas nada de oficial. Para tentares comunicar com o autor, procura o seu site pessoal ou o perfil no facebook.
ResponderEliminarCumprimentos e volte sempre que puder ao meu blog.
Obrigado.