2025.1 - A morte de Ivan Ilitch de Lev Tolstoi
A morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstoi (1886)
Sinopse: «Este livro tão breve, uma das maiores obras-primas do espírito humano, tem sido, desde a sua publicação, um motivo de controvérsia para a crítica: trata-se de uma obra sobre a morte ou de uma obra que nega a morte?» António Lobo Antunes
É de facto um livro relativamente breve, isso no que respeita ao seu número de páginas. No entanto, já li outros tantos que, com o triplo de páginas, disseram-me muito menos do que este disse.
Em relação ao termo “controvérsia” utilizado na sinopse, talvez o mesmo não se justifique assim tanto, já que uma obra sobre a morte pode ser, precisamente, uma obra que nega a morte. E é isso mesmo que este livro acaba por ser. Uma espécie de ensaio sobre a morte e algumas das coisas que podem estar relacionadas com a mesma. Neste caso acompanhamos o personagem principal, Ivan Ilitch, que vive a sua vida de forma relativamente normal. Isso não quer dizer que tudo seja perfeito, pois existem coisas que ele gostaria que fossem diferentes, sobretudo no seio familiar, no entanto isso não o demove de seguir em frente com a sua vida, na companhia da sua família. Aquilo que, de menos positivo, Ivan Ilitch possa encontrar na dinâmica familiar, ele tenta compensar com a sua dedicação ao trabalho. Desempenha a profissão de juiz de instrução num tribunal russo, profissão essa que encara com muita seriedade de dedicação. Essa dedicação, e espécie de obsessão, que se traduz na busca de um certo estatuto social e financeiro, resultando numa superficialidade do personagem e de quem lhe rodeia, acaba também por ser algo que ganha algum relevo ao longo do livro e à medida que tudo se desenrola.
A certa altura Ivan sofre um aparente pequeno acidente doméstico que acaba por desencadear algumas mazelas que se irão traduzir na doença que lhe acompanha ao longo de parte da sua vida, e que acaba por ser a causa da sua morte. Ao longo desse período, em que acompanhamos, juntamente com Ivan, a evolução da sua doença, os seus sintomas e as suas limitações, ele acaba por questionar a vida e a morte, colocando assim tudo em causa e em perspectiva. É-nos apresentado um quadro existencialista, com questões que nós próprios, mesmo não estando doentes ou tão doentes quanto ele, também já nos deparamos. Claro que algumas questões apresentadas aqui no livro vão estar diretamente relacionadas com a história de vida do personagem, a sua posição em termos pessoais, profissionais e familiares. São interrogações que acabam por ser perguntas retóricas, que surgem nos diversos momentos de introspecção do personagem, desafiando-nos ao mesmo tempo a refletir sobre esse temas que são transversais a todos nós, como é o caso do sentido da vida e as escolhas que fazemos ao longo desta.
Podia dizer que a “moral da história” (atenção que não pretendo com isso dizer que o livro se pode resumir apenas a uma “moral”, pois a sua leitura, na íntegra é mais do que recomendada) acaba por ser uma chamada de atenção para que se viva a vida de forma mais completa possível, guiada por valores como o amor, empatia e conexão humana, em contraste com uma vida dedicada a pequenos, ou grandes, “nadas”, quer em termos pessoais, quer em termos profissionais, resultando numa vida semelhante a um enorme vácuo.
Algumas passagens do livro:
“E, à medida que a existência corria, tornava-se mais oca, mais tola. “É como se eu estivesse descendo uma montanha, pensando que a galgava. Exatamente isso. Perante a opinião pública, eu subia, mas, na verdade, afundava. E agora cheguei ao fim – a sepultura me espera.”
“Fosse manhã ou noite, sexta-feira ou domingo, era tudo indiferente, o que havia era sempre o mesmo: uma dor surda, torturante, que não sossegava um instante sequer; a consciência da vida que não cessava de afastar-se sem esperança, mas que ainda não partira de todo; a mesma morte odiosa, terrível, que se aproximava e que era a única realidade; e sempre a mesma mentira. Para quê então os dias, semanas e horas do dia?”
“Mas o que é isto? Para quê? Não pode ser. A vida não pode ser assim sem sentido, asquerosa. E se ela foi realmente tão asquerosa e sem sentido, neste caso, para quê morrer, e ainda morrer sofrendo? Alguma coisa não está certa.”
“Procurou o seu habitual medo da morte e não o encontrou. Onde ela está? Que morte? Não havia nenhum medo, porque também a morte não existia.
Em lugar da morte, havia luz.”
“E o que tu queres agora? Viver? Viver como? Viver como tu vives no tribunal, quando o juiz proclama: ‘Está aberta a sessão!…’ Está aberta a sessão, a sessão” — repetiu consigo. — Aí está o julgamento! Mas eu não tenho culpa! — exclamou com raiva. — Por quê? parou de chorar e, voltando o rosto para a parede, pôs-se a pensar sempre no mesmo: por quê, por que todo esse horror?”
“Se Ivan Ilitch lembrava a ameixa seca cozida, que lhe ofereciam agora para comer, vinha-lhe também à memória a ameixa seca crua francesa, enrugada, da sua infância, o seu gosto peculiar e a abundância de saliva quando se chegava ao caroço, e a par dessa recordação de um sabor, surgia toda uma série de recordações daquela época: a ama-seca, o irmão, os brinquedos. “Não devo pensar nisso… é doloroso demais” — dizia Ivan Ilitch a si mesmo e tornava a transportar-se para o presente. Um botão nas costas do divã e rugas no marroquim. “O marroquim é caro, pouco resistente; foi causa de uma briga. Mas houve também outro marroquim e outra briga, quando rasgamos a pasta de meu pai e fomos castigados, e mamãe trouxe uns pirojki.” E de novo aquilo detinha-se na infância, e mais uma vez Ivan Ilitch sentia dor e procurava repelir aquelas imagens e pensar em outra coisa.
E de novo ali mesmo, a par desta sequência da recordação, perpassava-lhe no espírito uma outra sequência de lembranças: sobre como se intensificava e crescia a sua doença. Quanto mais voltava para trás, mais vida havia. Havia igualmente mais bondade na existência e mais vida propriamente, também. Ambas se fundiam. “Assim como os tormentos se tornam cada vez piores, também toda a vida se tornava cada vez pior” — pensou ele. Havia um ponto luminoso alhures, atrás, no começo da vida, e depois tudo se tornava cada vez mais negro e cada vez mais rápido. “Na razão inversa dos quadrados da distância para a morte” — pensou Ivan Ilitch. E esta imagem da pedra caindo para baixo com velocidade crescente calou-lhe no espírito. A vida, uma série de tormentos em crescendo, voa cada vez mais veloz para o fim, para o mais terrível dos sofrimentos. “Eu voo…” Estremecia, mexia-se, queria opor-se; mas já sabia que não se podia opor resistência, e novamente, com olhos cansados de fitar, mas impossibilitados de não olhar aquilo que estava diante deles, fitava as costas do divã e esperava: esperava essa terrível queda, empurrão e aniquilamento.”
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