2024.3 - A passadeira

Estávamos em Maio, num dia solarengo. O cenário era uma rua, cenário de cidade, pessoas a passar, carros a transitar. 

Foram colocadas as personagens em cena. Nesse momento a acção concentra-se em apenas duas delas, como se o resto, à volta, ficasse escuro ou nublado. Essas duas personagens avançam ao longo da rua, em direcções opostas, cada uma delas imersa nas suas ideias e a seguir o seu destino. 

Já lemos alguns capítulos desta história. Temos conhecimento que aquelas personagens já se conhecem, já se cruzaram, e que, por esse motivo, a cena que se desenrola indicia que iremos presenciar o seu reencontro. Portanto, do nosso ponto de vista, tudo desenrola-se de forma normal. No entanto, à medida que a distância entre as personagens encurtece, ao ponto de possivelmente se verem uma à outra, eis que uma delas tem uma reação inesperada, um movimento que surge por instinto, quase é quase como fecharmos os olhos quando algo se aproxima das nossas pestanas. Uma das personagem reconhece a outra e, como se entrasse automaticamente num estado de pânico momentâneo, hesita em seguir em linha recta. Linha essa que a levaria directamente à outra personagem, que é uma pessoa sua conhecida. Foi como se naquele momento de hesitação diversas engrenagens se movimentassem rapidamente, na tentativa de efectuar um cálculo, cujas variáveis desconhecemos, para chegar a alguma conclusão. Após essa rápida ponderação, efectuada durante o movimento de hesitação que poderia indicar que a personagem ia virar para outra rua, ou até mesmo dar uma volta de 180º, girar sobre si própria, como se se tratasse de um saco plástico que é guiado pelo vento e que muda drasticamente de direcção ou movimento, a personagem retoma o caminho que estava a seguir inicialmente, indo assim ao encontro da outra personagem. Deixando para trás o possível receio inicial de se cruzar com a outra pessoa. Esse referido encontro iria ocorrer ao atravessarem a mesma passadeira, em direcções opostas, conforme já foi dito. O facto da outra personagem estar de óculos de sol acaba por ser um factor que gera algumas incógnitas na equação, pois a personagem "desviante" lida com mais variáveis do que aquelas com as quais consegue lidar naquele momento. Assim, ao ir ao encontro da outra personagem, ao transitarem sobre as linhas brancas que sobrepõem o cinzento da calçada da rua, eis que presenciamos uma outra recação inesperada, ou não tão esperada quanto isso, mas que, naquele preciso momento, para a personagem desviante, foi inesperada e de certa forma chocante (embora também  de certa forma compreensível). Eis que a personagem de óculos de sol segue o seu destino, impávido e sereno, desviando ligeiramente o rosto, sendo que os óculos trataram de ocultar qualquer contacto visual que pudesse ocorrer, sem dar assim a menor indicação desta personagem querer cumprimentar a personagem desviante.

O comportamento humano pode ser assim, surpreendentemente bom, surpreendentemente mau.

Ao analisarmos a cena que se desenrola com a presença das referidas personagens pode fazer-nos pensar que esse encontro afinal foi um desencontro. Um desencontro que, baseado num momento de hesitação, pode transparecer que se tratou de um desencontro intencional. Mas tentaremos acreditar que não.

Tivemos oportunidade de sondar a personagem desviante, que nos indicou não ter propriamente um motivo especifico para aquela hesitação. No entanto indicou que a mesma possivelmente deveu-se ao facto de já se encontrar atrasado para compromissos profissionais e ao facto de não estar a contar com a interação social com alguém que já não via há imenso tempo. Apanhado de surpresa, que não se ficou pelo pensamento e acabou por se reflectir no seu movimento ou linguagem corporal, ainda assim tentou emendar a sua atitude, a sua decisão inicial, evasiva. No entanto pelos vistos já não havia emenda possível já que a outra personagem não demonstrou qualquer interesse em que isso pudesse acontecer.

Entretanto, tentando analisar a cena na perspectiva da outra personagem, também conseguimos perceber que presenciar tal hesitação, tal linguagem corporal, pode representar uma ofensa. Ofensa essa que não a permitisse fingir que nada se tinha passado. Motivo pelo qual a referida personagem optou por seguir solenemente o seu destino, ignorando por completo a presença da outra personagem. Se houvessem palavras a ser proferidas pela reacção ou pensamento dessa personagem, seriam provavelmente algo do género: "Se não me queres cumprimentar está descansado que quem te não cumprimenta sou eu, que nem me vou dar ao trabalho de reconhecer que partilhamos a mesma passadeira, que pisamos o mesmo chão. Segue o teu destino, que eu sigo o meu!" 

Por mais justificações que a personagem desviante tente arranjar, essas são agora escusadas, dado que as acções já ocorreram. 

Existem fracções de segundo que mudam muita coisa. É uma fracção de segundo que nos separa da morte. Existem  decisões, mesmo que inconscientes, que acabam por mudar o rumo das coisas. Premir um gatilho pode causar danos irreversíveis. 

Apesar de já ter havido um pedido de desculpas por parte da personagem desviante, é evidente que a outra personagem não as considerou. É possível que ambas se deixem guiar pelos seus próprios pensamentos e tirem assim as suas próprias conclusões, mesmas que essas conclusões nada tenham a ver com a realidade ou com aquilo que cada uma das personagens verdadeiramente pensa acerca da outra. Teremos de esperar por mais algum capítulo dessa história.

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