2023.3 - A Mulher do Dragão Vermelho - José Rodrigues dos Santos
“A Mulher do Dragão Vermelho” é um título que, sem ler a respectiva sinopse, pode levar-nos a pensar que estamos perante um livro relacionado com fantasia ou perante um livro que nos vai contar uma história de aventuras samurais algures no oriente. Mas não é nada disso que se trata.
O livro fala-nos essencialmente da evolução do Partido Comunista Chinês (PCC), nomeadamente a sua relação com o mundo exterior, as suas atitudes e ideologias, e sobretudo as suas atrocidades para com etnias que embora parte delas com origens noutros países vizinhos, também têm alguma expressão (entende-se por expressão existência) na China.
Como é o primeiro livro que leio do autor José Rodrigues dos Santos (apelidado por alguns de “o Dan Brown português” … alcunha que, a julgar pelos títulos e temáticas dos seus livros, não é de estranhar) não me vou pronunciar sobre a personagem de Tomás Noronha que, pelo que sei, faz parte de outros livros do autor e é uma personagem recorrente nas suas estórias. O papel desempenhado pela personagem neste livro é suficiente para ter uma breve ideia das suas características, sendo, nesse caso, um historiador que se vê envolvido numa missão de resgate/salvamento de sua esposa e da personagem central do livro, Madina (que é a personagem com maior densidade ao longo do livro).
O livro está estruturado de forma a apresentar-nos duas linhas temporais diferentes que depois acabam, de certa forma, por se cruzar.
Por um lado, acompanhamos o desenrolar da história no tempo presente (presente do livro, mas que também pode ser o presente actual, 2023), que nesse caso está relacionado com a fuga, a captura, e o possível salvamento da mulher misteriosa que, juntamente com a esposa de Tomás Noronha (Maria Flor), é raptada logo no início do livro (não se trata de um spoiler) porque detém algo que o PCC não quer que seja dado a conhecer ao mundo. Passo a referir essa linha temporal como Narrativa 1.
Por outro lado vamos acompanhar as diferentes fases da vida da personagem Madina, uma chinesa de etnia Uigur (a uma das etnias oficialmente reconhecidas pela China, mas consideradas como se fossem chineses de “segunda categoria”, conforme acontece com imensas outras etnias), de forma a percebermos a sua constante evolução e de que forma as suas escolhas ou circunstâncias a conduzem a fazer parte do PCC e se isso será suficiente para a fazer escapar das atrocidades a que estão sujeitos os cidadãos chineses dessas etnias. Essa pode ser a Narrativa 2.
Essa alternância temporal faz com que o livro mantenha um bom ritmo narrativo, conseguindo, na grande maioria dos capítulos, criar o suspense necessário para continuarmos a querer saber o que vem logo a seguir naquela linha narrativa. Pode haver a tendência a querer ler o livro seguindo as narrativas de forma independente (ler uma toda seguida e depois a outra), mas certamente fará mais sentido ler da forma como o livro as apresenta, já que as narrativas acabam por se complementar, pois em diversas situações as personagens da narrativa 1 vão abordando temas ou assuntos directamente relacionados com o que estamos a acompanhar ou a descobrir na narrativa 2, fazendo com que possamos os perceber melhor o que se está a passar nessa narrativa 2, como se estivesse a criar um contexto para aquelas coisas que se estão a passar e aquilo que podemos esperar que aconteça em breve. Na narrativa 2 vamos testemunhar as coisas quase em primeira pessoa. E digo quase porque as situações descritas, e a forma como a história é contada, está muito bem conseguida e construída. Mas felizmente estamos fora do livro, e não estamos a sentir na pele as consequências das acções de descriminação de que foram alvo (e ainda são) as diversas etnias consideradas inferiores. Em algumas situações são feitas algumas alusões ao genocídio e atrocidades nazis aquando da Segunda Guerra Mundial, já que essas acções acabam, de certa forma, por se repetir aqui, embora com algumas variações, atingindo também dimensões precoupantes e que nos fazem refletir quando delas ouvimos falar ou, nesse caso, lemos acerca delas. Deste modo posso adiantar que no livro serão abordados temas relacionados com campos de concentração, escravatura, restrições a todos os níveis que fazem com que, mesmo aqueles (pertencentes às tais etnias inferiores) que ainda estão a viver fora dos campos de concentração, não deixem de estar a viver numa prisão, pois mesmo fora da “prisão oficial” e do trabalho forçado (em regime de escravatura), a que estão sujeitos aqueles que estão dentro dos referidos campos de concentração, não deixam de também estarem sujeitos a outras heresias e experiências sociais que, quando as lemos aqui no livro, pensamos que estamos perante o desenrolar da criatividade e da imaginação do autor, quando na realidade (tal como é explicado e justificado no final do livro) as coisas descritas no livro baseiam-se em relatos reais. Coisas tão banais e que para nós, que estamos habituados à nossa liberdade “minimamente” condicionada (digo minimamente porque comparando com os exemplos de restrições presentes no livro não nos podemos queixar) nos soam a ridículo (como por exemplo ter o WhatsApp instalado no telemóvel, ver sites que possam sugerir acesso a informações de outros país e que estão fora do âmbito daquilo que o PCC apregoa ou defende como sendo o correcto, falar com familiares que estão fora da China, ter a moradia com paredes pintadas de cores que não sejam as do Partido, etc).
Os assuntos abordados referem-se a situações ou acontecimento acerca dos quais eventualmente já ouvimos falar, por já terem passado nas notícias, mas alguns deles são assuntos que, na maioria das vezes, acabam por ser “descartados” pela grande maioria de nós, já que estão durante algumas horas ou alguns dias a ter atenção dos media, com “mais tempo de antena”, mas depois vem outro assunto supostamente mais relevante que lhe “rouba o protagonismo”, e assim já temos outro assunto para assistir e para talvez pensar, fazendo com que o outro assunto se desvaneça na memória e seja “um problema dos outros lá longe”. Desta forma, este livro não deixa de ser uma chamada de atenção para uma realidade que acontece supostamente “longe de nós”, que consideramos que não nos afecta directamente ou de forma significativa, pois não interfere na nossa rotina do dia-a-dia. Mas já vimos recentemente que afinal de contas não é bem assim que as coisas funcionam (sim, refiro-me à pandemia, que nesse caso é apenas mencionada de forma fugaz no livro) e que se calhar, um dia acordamos, e as coisas já não são o que eram. Mas entretanto resta-nos ir aproveitando a nossa suposta normalidade e ir lidando com os nossos problemas que assumem a dimensão e importância directamente proporcional à realidade diária de cada um de nós, não fosse, no fim de contas, tudo muito relativo e subjectivo.
Voltando ao livro, este, no seu todo, e não querendo estar a repetir-me, acaba por ser uma tentativa de chamada de atenção para as possíveis verdadeiras intenções do PCC a médio ou longo prazo (esse longo prazo também é relativo) em relação ao Ocidente, passando como é óbvio pela Europa. Essas referidas intenções prendem-se também com o objectivo de dominação e expansão dos seus ideais ou ideologias, e do seu domínio através das mais diversas formas possíveis, quer sejam no âmbito financeiro, tecnológico, militar, territorial, ou outro.
Se por um lado já nos apercebemos que a tecnologia permite-nos estar todos interligados e ter a vida mais facilitada nos mais diversos aspectos, garantindo assim uma suposta maior comodidade/conforto, facilidade de acesso à informação, mais ferramentas para a vida profissional e pessoal, por outro lado também estamos aos poucos a aperceber-nos das suas mais diversas consequências, quer sejam a nível de saúde, quer sejam a nível da nossa verdadeira liberdade.
Mas chega de divagar, tudo isto para dizer que vale a pena ler o livro, pois trata-se de um livro interessante, que cumpre muito bem a sua função de informar e entreter (aqui o destaque não vai para as “cenas de acção” propriamente ditas, embora essas ajudem a complementar as histórias e a dar algum dinamismo ao longo do livro). Ainda assim, não duvido que haja quem o vá ler e pensar que o conteúdo do mesmo possa soar a teorias da conspiração por parte do autor. Para quem seja dessa opinião, ou leia este livro sob essa perspectiva, creio que, na mesma, não ficará desapontado com a sua leitura!
O único ponto que posso considerar como eventualmente negativo (ou menos positivo) é o facto de por vezes o autor se tornar repetitivo em relação a algumas ideias/opiniões/constatações que ele pretende transmitir, já que por vezes personagens diferentes, ou até a mesma personagem, falam dos mesmos tópicos ou assuntos, apresentando quase o mesmo discurso ou diálogo, não acrescentado assim grande conteúdo novo àquilo que já havia sido dito, como se o facto de a mesma coisa ser dita várias vezes fosse a forma que autor encontrou para fazer com que o leitor retenha efectivamente aquela ideia que ele pretende transmitir.
É verdade que é importante dar ênfase a determinadas coisas que queremos que não passem despercebidas e que se tornem um ponto central, mas há outras formas de o fazer sem ser repeti-las.
Por vezes menos é mais!
Deixo aqui uma breve entrevista ao autor em que ele tem oportunidade de falar um pouco acerca do livro. Escolhi essa entrevista por ser relativamente curta e não ter, a meu ver, spoilers.
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